Em cidade do Sertão, irmãos achavam que eram anões, mas têm doença genética rara...

 

Doença genética


Vivendo em Princesa Isabel, no Sertão da Paraíba, os agricultores aposentados Francisco, 70, e Judite Clementino, 66, demoraram cerca de 30 anos para descobrirem que 5 dos 16 filhos que tiveram nasceram com uma doença rara chamada mucopolissacaridose tipo IVA (MPS tipo IVA), que compromete, principalmente, a estrutura e o crescimento do esqueleto.

Um dos sinais mais perceptíveis é que a criança para de crescer, e foi o que levou Janailson Clementino, 33, um dos filhos com MPS tipo IVA, a acreditar que tinha nanismo. “Durante toda minha vida achei que eu e meus irmãos [que têm a doença] éramos anões. Eu brincava que parecia a história dos 7 anões, só faltavam mais 2”, conta ele bem-humorado, que parou de crescer aos 5 anos, e tem 1 m de altura.

Além de Janailson, Josefa, 40; Cícero, 30; e Madalena, 28, e Damiana, que já morreu, também têm a doença, mas eles só descobriram a condição em 2016, graças a uma outra irmã deles, Francinalva Clementino, 39, agente comunitária de saúde, que participou de uma palestra sobre o assunto.

“Nunca tinha ouvido falar da MPS, mas à medida que fui ouvindo e vendo as fotos, soube que meus irmãos tinham aquilo. No final da reunião, as organizadoras perguntaram se a gente conhecia alguém, e eu disse que sim”, conta a agente.

Segundo Francinalva, a mãe conta que os irmãos nasceram aparentemente saudáveis, mas a partir dos 5 anos alguns sinais ficaram mais nítidos e outros começaram a aparecer: eles pararam de crescer, ficaram com deformidades ósseas nas costas, nas pernas e com as mãos em garra.

A partir dessas mudanças, os pais passaram a acreditar que os filhos tinham alguma deficiência, o que era natural para eles porque já tinham parentes com algum tipo de deficiência. Naquela época, comenta a agente de saúde, os pais não tinham instrução, e era um tempo difícil.

“A gente não passava com pediatra, só íamos ao posto de saúde quando ficávamos doentes. Eles nunca procuraram saber o que meus irmãos tinham, apenas cuidavam deles”, relembra.

Ao longo dos anos, o quadro dos irmãos só piorou, com sinais e sintomas que variaram entre dores no corpo, problemas respiratórios, cardíacos, fadiga, perda auditiva, entre outros. Cícero e Madalena perderam a mobilidade e força dos membros inferiores e se locomovem com cadeira de rodas. Josefa consegue andar empurrando o carrinho.

Janailson é o que está em melhores condições de saúde. Embora ele tenha perdido 25% da audição do ouvido esquerdo, ele anda, vai para festas com os amigos e ajuda a mãe com os irmãos, dando comida ou fazendo algo que ela precise: “Graças a Deus sou um cara que nunca reclamei da vida, sempre levantei a cabeça diante dos obstáculos”.

Ao informar na palestra que seus irmãos tinham MPS, Francinalva recebeu das organizadoras o contato de uma geneticista de Campina Grande, que pegou o caso da família. O diagnóstico foi confirmado por um exame genético específico, mas os quatros irmãos também fizeram outros exames e foram avaliados por diversos especialistas.

A médica Paula Frassinetti V. de Medeiros, que atende os irmãos, explica que a MPS tipo IVA é uma doença de herança autossômica recessiva, isto é, quando ambos os pais são sadios, mas portam um gene defeituoso.

Além disso, há um risco maior de os filhos terem uma doença recessiva quando os pais são consanguíneos. “Seu Francisco e dona Judite são primos de segundo grau. E em se tratando de doença recessiva, o casal tinha um risco elevado de 25% em cada gravidez de ter um filho com a MPS IVA, o que explica o fato de 5 deles terem a doença”, comenta a geneticista, que é membro titular da SBGM (Sociedade Brasileira de Genética Médica), professora de genética médica da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e responsável pela terapia de reposição enzimática (TER) de pacientes com MPS do Hospital Universitário Alcides Carneiro da UFCG.

Francinalva diz que a família não esboçou uma grande reação com a descoberta da doença, mas no início eles resistiram em aceitar o tratamento por conta da distância: “Meus irmãos teriam que ir uma vez por semana de Princesa Isabel até Campina Grande [cerca de 290 km, mais de 4 horas de carro] para tomar a medicação no hospital, era muito longe e ficava difícil para eles. Eles pensaram em desistir, mas quando conseguiram que eles tomassem a medicação na nossa cidade, aceitaram”.

Apesar da recomendação da geneticista de iniciar o tratamento o quanto antes —a terapia de reposição enzimática (TER) consiste em repor a enzima da qual o paciente nasceu deficiente— os irmãos só tiveram acesso à medicação em agosto de 2021, cinco anos depois do diagnóstico por algumas questões que envolveram desde o pedido do remédio na defensoria pública até a demora na distribuição pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Com a ajuda de Gláucia Barros, que é conselheira científica da Fedrann (Federação das Associações de Doenças Raras do Norte e Nordeste), que tem um filho com MPS, e de Luana, que é do CER (Centro Especializado em Reabilitação) de Princesa Isabel, a família conseguiu a medicação.

“Todo sábado, eu e meus irmãos vamos para o hospital tomar o remédio, é como se fosse um soro. De forma geral, todos tivemos uma melhora. Vivia muito cansado, a respiração era ofegante, os batimentos cardíacos eram acelerados. Com o tratamento, diminuiu bastante o meu cansaço, e a frequência cardíaca ficou estável. A Madalena, que era a mais debilitada, está tendo força para segurar a colher, comer e escovar os dentes sozinha às vezes”, conta Janailson.

Embora se lamente de não ter descoberto a doença antes, Francinalva comemora que os irmãos estejam em tratamento: “Eles sofriam muito com as dores, hoje a qualidade de vida melhorou bastante”.

Saiba mais sobre a doença

1) O que é MPS IVA, também conhecida como a Síndrome de Mórquio A? A mucopolissacaridose tipo IVA faz parte de um grupo de doenças raras, de causa genética hereditária, denominado mucopolissacaridoses, também conhecidas como MPS.

As MPS afetam vários órgãos e sistemas, mas a MPS tipo IVA compromete sobretudo a estrutura e o crescimento do esqueleto. Como se trata de uma doença de herança autossômica recessiva, isto é, ambos os pais são sadios, mas portam um gene defeituoso, há um risco maior de ter filhos com essa síndrome quando os pais são consanguíneos (laço de sangue).

2) Quais os sinais/sintomas?

Os primeiros sinais são perceptíveis entre 1-2 anos de idade, e estão ligados principalmente ao esqueleto, como deformidades ósseas nas pernas, coluna e tórax, desaceleração progressiva do crescimento, macrocrania (cabeça grande), pescoço curto, hiperflexibilidade articular (articulações muito flexíveis), opacidade da córnea, infecção respiratória de repetição e perda auditiva.

O acúmulo de uma substância nas vias aéreas superiores e amígdalas predispõe ao desenvolvimento da apneia obstrutiva do sono pela obstrução das vias aéreas superiores. No coração, as válvulas cardíacas são prejudicadas pelo depósito desta substância.

3) Como é feito o diagnóstico?

O padrão-ouro para diagnóstico da MPS tipo IVA é a dosagem enzimática realizada no sangue com comprovação de diminuição ou ausência da enzima N-acetilgalactosamina-6- sulfatase.

O teste genético, com o sequenciamento do gene GALNS, é muito útil para o aconselhamento genético à família. Muitas vezes o médico radiologista pode identificar sinais de mucopolissacaridose em radiografias do esqueleto, sobretudo do tórax, coluna, joelhos e mãos, mas o tipo de MPS só será determinado pela avaliação enzimática ou molecular.

Por se tratar de uma doença rara e de comprometimento multissitêmico, isto é, que pode acometer todos os sistemas, é comum que o paciente se consulte por anos com diversos especialistas até obter o diagnóstico. Em geral, o estudo de doenças raras não faz parte da formação médica, e os médicos geneticistas, que são os profissionais mais preparados para esses diagnósticos, são em número reduzido no Brasil e estão nos grandes centros.

O diagnóstico tardio pode prejudicar muito a vida do paciente, pois os sinais e sintomas estarão evoluídos e o medicamento que evita a progressão da doença não será tão eficiente.

4) Quais os principais problemas que a doença pode causar ao paciente?

É importante enfatizar que os pacientes com MPS tipo IVA não têm deficiência intelectual. Os principais problemas que eles apresentam são as deformações esqueléticas, que prejudicam o ato de caminhar, o crescimento, a respiração e podem ocasionar problemas neurológicos na coluna. Além disso, pacientes com MPS tipo IVA também podem apresentar perda auditiva e déficit visual.

5) Quais os tratamentos?

Os pacientes com MPS tipo IVA requerem assistência multiprofissional, com fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e com diferentes especialidades médicas. De preferência, o tratamento deve ser realizado em um centro de referência.

Vale enfatizar que nem todos os pacientes apresentarão as múltiplas manifestações da doença, que costumam ser mais frequentes e intensas em quem tem a forma grave da condição.

Atualmente, a terapia de reposição enzimática, que consiste em repor a enzima da qual o paciente nasceu deficiente, é administrada uma vez por semana por infusão intravenosa no hospital. É o tratamento mais promissor, mas isso depende de quando foi iniciado, que idealmente seria logo após o nascimento.

6) A doença tem cura?

A MPS tipo IVA não tem cura. A expectativa de vida para um paciente com essa doença é de 30 anos, sem tratamento. Com a terapia, é possível aumentar a expectativa e qualidade de vida do paciente, mas não corrigir as sequelas da doença.

8) Por que Paraíba tem um elevado número de pacientes com a doença?

A frequência da MPS tipo IVA varia de país para país e mesmo dentro de um mesmo país. Para se ter ideia de números, um estudo da Rede MPS Brasil publicado em 2021 mostrou que, entre 1982 e 2019, 1.652 pacientes foram diagnosticados com MPS no Brasil, no entanto, a MPS tipo IVA foi a penúltima menos frequente, com 12,41%, na sua maioria oriundos da Paraíba.

A elevada consanguinidade no estado, decorrente da colonização portuguesa, que possuía forte tradição de casamento dentro da mesma família, contribui para a frequência da doença no estado. Isso fez surgir na Paraíba um número alto de pacientes com MPS tipo IVA como resultado de “efeito fundador”.

Como já explicado, a consanguinidade favorece a ocorrência de doenças raras com esse tipo de herança autossômica recessiva, como a MPS tipo IVA. Um casal que tem um filho com herança autossômica recessiva tem 25% de possibilidade de ter outro filho afetado em cada gravidez.

Um outro estudo sobre ancestralidade e mutações no gene GALNs em pacientes com MPS tipo IVA, realizado no Hospital Universitário Alcides Carneiro, em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apontou que a maioria dos pacientes tinha uma mesma mutação no gene GALNS e os mesmos marcadores de ancestralidade comuns na Península Ibérica, mais especificamente em Portugal. Esse estudo corrobora os dados históricos de colonização da Paraíba.

Fonte: As informações são do UOL

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